sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Papéis;

Ao escrever em um bloco de folhas a caneta não marca apenas o papel pelo qual passa sua ponta. A folha logo abaixo, mesmo que um pouco, tem marcada sua superfície pela pressão exercida em sua vizinha. Ser amigo é ser como folha suporte. É estar ao lado do outro e sentir, mesmo que em menor intensidade, as marcas da caneta que por ele passa. Sejamos como bloco de papel, e quando as canetas mais pesadas passarem por nós, estejamos juntos.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Espelho;

(... continuando)

Atravessou o quarto em direção ao espelho, parou. Seu reflexo parecia tão diferente do usual. Estava embaçado. Não demorou muito para descobrir o motivo, pois o gosto salobro de sua própria tristeza havia rolado sobre sua face e escorrido até a sua boca. Saiu dali e foi em direção ao armário, precisava trocar-se para sair. Refletido no espelho límpido ficou o copo vazio pousado sobre o pequenino coração entalhado na madeira.

(continua...)

Infinitivar;




Amar distante
Viver errante
Esperar constante
A tua presença


Falar indireto
Sentir correto
Chorar discreto
A tua ausência



quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Objetos;

Não me uses como usaram os outros, não me interessa ser caneta em tuas mãos. Não quero escrever histórias que não falem sobre mim, nem cartas endereçadas a outro coração. Não me use como usaram os outros, eu não mereço esse desprezo. Mesmo sendo presente pequenino, mantém por mim algum apreço. Não me uses assim, pois não o faço com você. Não me trate como simples papel amassado que os anos irão corroer. Espero que escute esse singelo pedido e não me uses, mas se não escutares faz-me um favor; guarda-me junto a ti: caneta, presente ou papel. Pois, embora deseje, não ouso te pedir amor.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Antíteses;

Não há alegria plena, nem tristeza insuperável.
Não há erro que não se perdoe, nem perdão sem ter errado.
Não há quem não sinta dor, nem dor inacabável.
Não há quem não ame, nem quem não é amado.
Há de se passar por muito na vida, mas a morte é inevitável.

Conselhos a um insano;

Não te agites assim por ele, quanta estupidez! Pára de levar meus pensamentos para longe de onde deveriam estar, de tornar desengonçados meus atos, de travar-me a língua, nublar-me a visão. Não despertes em mim tamanho afeto, que eu quero livres as minhas idéias, que eu quero livre o meu eu. Afasta tão inebriante cárcere deste que vos aconselha, que eu não quero nas mãos de outro minhas vontades. Ah, tem pena de mim e não te agites assim por ele, coração.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Cabeceira;

(continuando)

Estendeu o braço em direção à cabeceira da cama para apanhar um pente, se deixasse como estava o cabelo acabaria por formar nós permanentes. Ao retirar o objeto do local percebeu um arranhão familiar, o pequeno coração que haviam feito juntos muito tempo atrás. Debruçou-se sobre o desenho entalhado na madeira com faca. Afastou-se imaginando como iria aquilo dali. Porque não havia escutado-o? Se tivessem desenhado o coração com corretivo para canetas seria fácil fazê-lo sumir, agora, porém, aquela marca ficaria ali até que se trocasse o móvel.

(continua...)

Cama;

(... continuando)

Sorveu todo o conteúdo do copo e voltou ao quarto, mirando por um bom tempo a cama que deixara desarrumada. Ela tinha esse hábito, e ele sempre que podia forrava. Sim, forrava. Já não mais faria isso. Ela já não teria de dia arrumado aquilo que desarrumara de noite. Deixaria daquela maneira, sem ele as coisas certas não faziam sentido.

(continua...)

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Copo;

Acordara com a impressão de ter sentido o cheiro dele em algum lugar, devia ter sido apenas uma impressão realmente. Já fazia semanas que ele não punha os pés naquele quarto. Retirou de cima de si o cobertor branco com bolinhas azuis, que remetia a ele por conta da cor menos dominante. Azul. Como a maioria das blusas dele. Prometeu a si mesma trocar as roupas de cama assim que pudesse. Levantou-se, e com passos arrastados pela saudade (misto de esperança e saudosismo) que ainda sentia, foi até a cozinha. Retirou da geladeira a jarra de água, cujo conteúdo despejou displicentemente dentro do copo. Ao colocar a jarra de volta, fechou a porta do eletrodoméstico e fitou o copo. Aquilo não era surpresa, enchera-o com exatamente a mesma quantidade de que ele gostava “- não enche tudo, não, linda.” Sim, meio cheio era de como ele gostava. Não entendia, no entanto, como agora, mesmo enchendo-o com a mesma quantidade, lhe parecia que o copo estava tão... Meio vazio.

(Continua...)

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Falta;

Ah, que falta faz tua presença que nunca tive, o teu cheiro que nunca senti, teu riso que nunca ouvi, a pele que nunca toquei. Como pode ser tão ruim assim não ter o que nunca se teve, como cego que nasce sem ver, botão de alegria que não floresce.
(...) Mas é bom lembrar-se de ter cuidado quando florescer, as pequeninas flores de amora se esfarelam fácil.

Tudo igual;

E a barriga vazia clama por ser preenchida. Retorce, treme, vira, meche. Ignora-se seus pedidos com a desculpa de ter muito o que fazer. Corre, escreve, anda, ajeita. Maldita revista que mostra o que não se quer ver, maldito jornal, maldita TV. Rasga, risca, desliga, chora. Maldito espelho que não muda. Pára.

Me diz, por favor, o que fazer agora?

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Deficiente sentimento;

Qual cor teria o medo?
Que barulho faria a felicidade?
Qual seria a temperatura da dor?
E que cheiro teria a amizade?

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Espelhos tortos;

Adentrei o recinto sem maiores pretenções. Qual não foi minha surpresa quando percebi estar em todas as paredes. Lá estava eu, emoldurada tal qual obra de arte. E para cada parede que olhava me via de forma diferente. Andei por vários corredores, experimentei várias visões de mim. Algumas, confesso, achei estranhas e não gostaria que ninguém visse, gostei de outras, houveram também as quais eu nem olhei. Ao fim do passeio, porém, saí da casa de espelhos tortos com uma única interrogação: como será que ele me vê?